06/06/2022 13H36

A gestão executiva corresponde ao período de 30 dias da campanha eleitoral

O Presidente da República, João Lourenço, convocou as próximas eleições para o dia 24 de Agosto. Entretanto, o Decreto Presidencial que convoca as eleições apenas entra em vigor hoje.

A convocação das eleições gerais, pelo Presidente da República, traz consigo implicações jurídicas em todo o processo eleitoral.

Com a entrada em vigor, a partir de hoje, do Decreto Presidencial que convoca as próximas eleições gerais, o actual Governo entra em gestão corrente, até à tomada de posse do novo Presidente da República, a ser eleito a 24 de Agosto.

O artigo 116º -A da Constituição da República revista estabelece que “no período que decorre entre a campanha eleitoral e a tomada de posse do Presidente da República eleito, cabe ao Presidente da República em funções a gestão corrente da função executiva, não podendo praticar actos que condicionem ou vinculem o exercício da actividade governativa por parte do Presidente da República eleito”, lê-se na norma.

O Jornal de Angola recupera uma matéria, publicada há pouco tempo, com juristas e representantes de partidos com assento parlamentar para ajudar o leitor a perceber como o Executivo vai funcionar neste período.

Para o jurista João Pinto a gestão corrente da função executiva significa não poder praticar actos normativos, administrativos ou contratos que possam comprometer o futuro Executivo. “A gestão corrente da função executiva ocorre entre a convocação das eleições, campanha eleitoral e a tomada de posse do novo Presidente da República ou do Governo”, esclarece.

A gestão executiva, segundo ainda João Pinto, corresponde ao período de 30 dias da campanha eleitoral (nº 1 do artigo 116º da Constituição), atendendo à convocação das eleições, que ocorre 90 dias antes do termo do mandato do Presidente em funções e dos deputados, segundo o artigo 112º da Constituição.

O também docente universitário explica, ainda, que os actos praticados na gestão corrente são limitados e aplicam-se, igualmente, aos auxiliares do Presidente da República, como está expresso no novo artigo 116º -A da Constituição da República, aditado pela Lei de Revisão Constitucional nº 18/21, de 16 de Agosto. João Pinto justifica a extensão da limitação dos actos aos auxiliares do Presidente da República, por, à luz da Constituição, o Executivo angolano ser um Governo unipessoal.

O jurista faz mais esclarecimentos sobre a gestão corrente da função executiva. O Presidente da República “exerce a sua função em gestão corrente ou seja, não pode comprometer o futuro Executivo, devendo apenas governar em duodécimos. Se não tiver OGE aprovado, não deve praticar actos normativos ou administrativos que ultrapassem a mera gestão corrente ou do que já esteja em execução, segundo o artigo 128º, nº 3 da Constituição, na versão de 2010”. Neste caso, sublinha, as eleições devem decorrer num prazo de 120 dias.

Legitimidade do Parlamento

Os governos de gestão são típicos nos modelos de base parlamentares, afirma o jurista João Pinto, que justificou a opção por entender-se que a legitimidade do Executivo vem do Parlamento.
“Sendo dissolvido ou no termo do mandato, não deve endividar o Estado ou comprometer o futuro Executivo”, exemplifica.

Segundo o deputado, adoptou-se este tipo de governos por entender-se que a experiência mostrou haver necessidade de se disciplinar as acções no período de um Executivo para o outro”.

Outra situação, refere, é o facto de a Lei de Alteração da Lei Orgânica das Eleições Gerais ter consagrado uma norma que veio limitar o Executivo em funções, para não inaugurar obras públicas ou privadas no período da campanha eleitoral até à tomada de posse, configurando um crime de corrupção eleitoral, nos termos dos nº 2 e 3 do artigo 68º da Lei Orgânica das Eleições Gerais.

Tal alteração, disse, resultou do veto do Presidente da República aquando da aprovação da iniciativa legislativa do Grupo Parlamentar do MPLA, que a Oposição propusera como requisito de “verdade e transparência eleitoral”, tendo o Chefe de Estado requerido a reapreciação do diploma pelo Parlamento.

“O Grupo Parlamentar do MPLA anuiu, por não ver nele mais do que evitar um clima de crispação política em período eleitoral, garantindo mais confiança e tendo em conta o facto de ser o Presidente da República que encabeça a lista de deputados, nos termos do artigo 109º da Constituição”, sustenta.

O também deputado do MPLA considera que a consagração, na Constituição da República, da gestão corrente da função executiva gera “embaraços políticos” ao actual Executivo, que se comprometeu, publicamente, a realizar tarefas de ordem imobiliárias, mobiliária e bens e serviços para satisfazer os eleitores.

“A democracia é uma competição onde cada um dos concorrentes faz promessas. Realizando o prometido, transmite mais confiança junto dos eleitores, até por ser a via de angariar outros eleitores jovens”, diz João Pinto, para quem este é um desafio político e jurídico em todas as democracias.

“Claro que o Direito Público ou Político é maleável e aberto às reivindicações sociais da maioria ou de franjas que, não pertencendo à maioria, fazem-se ouvir, por via de sugestões normativas ou políticas, para que consiga fazer passar as suas ideias ou até embaraços para quem detém o poder, mas é um desafio acolhido, o que, em parte, pode ser conjugado com a gestão executiva em período eleitoral”, observa.

Segundo João Pinto, a doutrina administrativa angolana defende governos de gestão, mas nunca para impedir inaugurações de realizações de um Programa de Governo vencedor que justifica o seu mandato para obter mais confiança dos eleitores.

“O que se coloca nesta situação é saber se um Executivo que se viu impedido de inaugurar as suas realizações, em caso de perder as eleições, o faz depois dos resultados ou caberá ao novo Executivo vencedor, podendo este usurpar prerrogativas políticas que, moralmente, não as merece ou se entenderá como património público que caberá ao novo Governo que conduz a Administração”, exemplifica.

O jurista é de opinião que “fomos ousados demais”, considerando que isso exigirá uma programação dos investimentos públicos e a sua conclusão nos últimos 30 dias antes da campanha. Isso “exigirá (também) superar muita burocracia, melhoria dos procedimentos de contratação pública e de fiscalização preventiva, concomitante e sucessiva do Tribunal de Contas”.

Este é, para João Pinto, o desafio da verdade eleitoral, transparência e probidade pública em questões de gestão da função executiva em período de campanha eleitoral ou na transição de um Governo em funções para outro, devendo regular-se com precisão a transição do mandato presidencial para outro, seja do mesmo partido ou coligação de partidos, seja de forma diferente.

“Evita-se embaraços ao futuro Executivo com um Programa de Governo vencedor e uma estratégia ou planificação própria”, considera o docente universitário, para quem o actual modelo é raro nas democracias consolidadas. Secretário-Geral- Álvaro Daniel da UNITA destaca inovação legislativa

O secretário-geral da UNITA, Álvaro Chikwamanga Daniel, considera uma inovação legislativa a norma introduzida na Constituição da República referente à gestão da função executiva.

“Não existe, na nossa Constituição, uma designação taxativa de Governo de Gestão. Entretanto, foi introduzido, na recente revisão constitucional, um artigo (o 116º) que se refere ao assunto. É uma inovação que procura, ainda que parcialmente, resolver situações embaraçosas como nomeações e inaugurações em plena campanha eleitoral”, afirma.

Segundo o também deputado, com aquela norma, pretende-se impor algumas limitações de poder ao Presidente da República. “Salvo em situações devidamente fundamentadas, não há mais, nesse período, iniciativas legislativas e executivas, pois podem configurar busca de vantagens competitivas”, refere.

Apoiando claramente a revisão introduzida na Constituição da República, com o estabelecimento do regime da gestão da função executiva, Álvaro Daniel aponta as “mexidas” efectuadas pelo ex-Presidente da República, José Eduardo dos Santos, em 2017, nos órgãos de Defesa e Segurança, quando já se tinha um Presidente eleito, como um exemplo da necessidade de normas como a do artigo 116º A.

“Na verdade, (aquela decisão) foi uma forma de reduzir alguns poderes do Presidente eleito”, considera o deputado da oposição, para quem, não fosse a sua determinação, João Lourenço teria perdido algum controlo do poder, sobretudo na qualidade de Comandante-em-Chefe das Forças Armadas.

Seja como for, apesar da determinação de João Lourenço, Álvaro Daniel é de opinião que a decisão de José Eduardo dos Santos representou uma “afronta ao Presidente eleito e o início de um clima relacional menos bom” entre ambos.

É por isso e não só que o secretário-geral da UNITA congratula-se com a introdução, na revisão constitucional, de uma norma que estabelece a gestão da função executiva. “Com essa norma, aquela situação não pode voltar a acontecer”, diz, referindo-se àquilo que considerou de afronta do ex-Presidente da República ao actual Chefe de Estado.

Regra prevê excepções – Jurista Onofre dos Santos fala em evitar “encargos futuros”

O Presidente da República deverá limitar-se à prática dos actos de execução do orçamento e dos programas aprovados durante o seu mandato, afirma Onofre dos Santos, juiz conselheiro jubilado do Tribunal Constitucional, quando convidado, pelo Jornal de Angola, para abordar a questão da gestão corrente do Executivo, antes das eleições.

“Parece, pois, lógico que o Presidente se deva abster de aprovar programas ou despesas que impliquem encargos futuros, sobretudo se se tratar de montantes excepcionais”, refere o magistrado.

O que se pretende, esclarece, é que, em fim de mandato, o Presidente da República – que no ordenamento jurídico angolano é o Titular do Poder Executivo – se limite a exercer as suas competências que não envolvam a disposição do património ou a definição de novas políticas ou estratégias, mas apenas as que respeitem ao cumprimento dos planos já aprovados.

Para Onofre dos Santos, a recente Revisão Constitucional introduz uma inovação restritiva ao exercício dos poderes do Presidente da República durante o período que antecede a sucessão presidencial.

Durante os perto de 60 dias que incluem os 30 dias da campanha eleitoral, o dia das eleições, mais os 10 dias para a CNE proclamar os resultados definitivos, acrescidos dos 15 dias que, no máximo, devem mediar até à tomada de posse do Presidente eleito (n.º 2 do artigo 114.º da Constituição da República de Angola-CRA), o Presidente cessante não deve praticar actos que condicionem ou vinculem o exercício da actividade por parte do seu sucessor.

Durante esse período, sublinha o jurista, o Presidente deve auto-limitar-se aos actos de gestão corrente da sua função executiva.

“A pergunta é mesmo a de se saber o que é que o Presidente não pode fazer durante esse período de contenção constitucional. Nos termos da proposta de revisão constitucional, a razão de ser desta norma ‘é a de impedir que o Presidente da República em funções tome decisões com efeito ou impacto no médio/longo prazos, devendo limitar-se à prática de actos de gestão corrente’”, sustenta.

Onofre dos Santos sublinha, entretanto, que a regra contempla excepções.

Lucas Ngonda, da FNLA “Inaugurações são actos normais e não aliciamento ao voto”

O sociólogo e deputado da FNLA Lucas Ngonda lembra que as eleições gerais em Angola decorrem da Constituição da República e trata-se de um processo de renovação de mandatos para os governantes.

Por isso, para o também decente universitário, “o período eleitoral não abre um sistema de transição governamental com outros poderes”. A título de exemplo, diz que os poderes constituídos pelas eleições de 2017 só terminam depois da investidura do novo poder executivo saído das urnas.

“Não haverá um sistema de governação que começa e termina na chamada transição. O que existe são disposições jurídicas legais que limitam alguns actos de governação durante o período eleitoral, por razões óbvias que têm a ver com o respeito a uma situação em que todos os candidatos devem gozar das mesmas oportunidades e partir quase em pé de igualdade”, considera.

O ex-presidente da FNLA afirma, ainda, que, durante o período eleitoral, o Titular do Poder Executivo tem as suas competências limitadas sobre certas matérias, mas isto não quer dizer que se instituiu um sistema de governo de transição. “As instituições do Estado são limitadas na tomada de certas decisões durante esse período até à eleição de um novo Executivo, de acordo com a Constituição e com a Lei”, refere.

Lucas Ngonda faz, igualmente, uma referência às inaugurações de infra-estruturas em vésperas de eleições, que têm sido consideradas por muitos como uma forma de aliciamento ao voto do partido que governa. Para o político, normalmente isto acontece numa sociedade onde a educação política dos cidadãos é inexistente ou deficitária, como é o caso de Angola.

“Em qualquer país onde a democracia funciona, normalmente não há aliciamento do voto de cidadãos através de ofertas ou de inaugurações de infra-estruturas que se transformam em instrumentos de propaganda política a favor dos governantes ou de um partido político com um certo poder económico”, observa.­ Para os governantes, diz, a construção de infra-estruturas e outras coisas são actos normais de quem tem a responsabilidade de trabalhar para o interesse comum.

Revista Destemidos.